Dentre tantas preocupações de pais e mães na hora de educar seus filhos, poucas coisas assustam tanto quanto as mentiras que as crianças contam. No começo, ainda fantasiosas, possuem até um certo charme, um tom mágico, poético e inocente típicos do mundo infantil. Depois, quando perdem o caráter encantador e adquirem detalhes meticulosamente articulados, passam a preocupar as famílias. E aí surgem algumas questões: até que ponto devo me preocupar? Isso é normal? Meu filho é um mentiroso compulsivo? O que devo fazer?

Do ponto de vista da psicologia, um recente estudo realizado na Universidade de Toronto, no Canadá, mostra que faltar com a verdade na infância não é, assim, de todo o mal e pode, até, acredite, desenvolver as competências cognitivas da criança. O professor e pesquisador Kang Lee, que estuda a mentira há mais de duas décadas, é quem defende essa tese. “Quando você olha para as duas habilidades importantes para mentir – autocontrole e a teoria da mente-, elas são habilidades cognitivas fundamentais que os humanos devem ter para sobreviver em sociedade”, afirma.

No entanto, embora a psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, Patrícia Fraia, corrobore com a ideia de que mentira faz parte do desenvolvimento natural da identidade do ser humano desde a primeira infância, ela alerta que, se for um comportamento corriqueiro e prolongado, pode ser sinônimo de que algo não vai bem. “É natural quando se é criança, quando se está experimentando a vida e vendo se os pais estão atentos, testando limites, que a criança invente situações não reais. Mais adiante, no entanto, a mentira pode atenuar a angústia e o sofrimento gerados, sobretudo, pelas expectativas que os pais colocam nos filhos”, afirma.

Por isso, a especialista ressalta que é importante que os pais observem se a mentira pode estar sendo usada como sintoma de medo de se expor ou por falta confiança na relação. “Sentar e conversar é fundamental. Mas esse relacionamento de intimidade e aproximação deve ser desenvolvido desde a criança pequena, nos momentos com a sós com os pais e nas interações com a família. Porque lá adiante, relações desgastadas com os pais muitas vezes levam à mentira – é mais fácil para a criança ou adolescente mentir que lidar com a briga, ou com um campo de batalhas diário. Para evitar isso, a criança fala o que os pais querem ouvir”, alerta.


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A mentira descoberta

Silvana*, e sua filha Julia*, de 6 anos, passaram recentemente por uma experiência na qual ambas tiraram uma grande lição: fazer da mentira descoberta um momento de reflexão, correção e humildade. Julia, certo dia, chegou da escola com uma marca roxa em seu braço, parecendo uma mordida sem marcas de dentes. Questionada pela mãe, não hesitou em dizer que havia sido um amiguinho que a teria mordido durante o recreio. A mãe, preocupada por ter tido conhecimento do fato através da criança e não da escola, fez contato com a diretora e vice-diretora da instituição contando o caso e pedindo uma providência. 

O colega, apontado pela menina como autor da mordida, negou veementemente que havido sido o responsável. Diante da contradição da história e dos detalhes confusos, Julia acabou confessando que havia mentido: ela mesma havia feito as marcas em seu braço com a sua boca e mentiu por medo da mãe lhe dar uma bronca. 

Constrangida, a mãe esclareceu a todos o caso e conversou com a menina explicando, sobretudo, a proporção que a história havia tomado e como uma pessoa totalmente inocente estava sendo acusada de algo e poderia, até mesmo, ter sido injustamente penalizada. Julia, arrependida, ouviu e aguardou a decisão dos pais que a incentivaram a escrever cartas de desculpas para todos os envolvidos, especialmente para o menino. “Explicamos a ela que, quando alguém mente, acaba perdendo a confiança e que retomar a credibilidade e fazer com que adultos ou colegas voltem a acreditar em sua palavra, não é simples e toma tempo”, conta. 

Segundo a psicanalista Patrícia, a família agiu de forma adequada não punindo ou castigando a menina. “Essas nunca devem ser as saídas. A máxima ‘Violência gera violência’ é real e mentir já é uma forma de violência. Alguém precisa quebrar o ciclo. É preciso entender sobre o que se trata aquela mentira, o que não foi dito e por que não foi dito –  e tratar a questão juntos, ali” afirma.

 

Formas de lidar com a mentira

Danielle Rigolin, mãe de três meninas – Joana (6), Cecília (11) e Isabella (14) – lida, em casa, com as mentiras usuais de cada faixa etária –  mas também opta sempre por não fazer alarde, tratando-as com cuidado e certa naturalidade. “As meninas, quando pequenas, tiveram episódios em que traziam brinquedos de amigos para casa e diziam que tinha ganhado deles de presente. Pela cara, eu já percebia que não era verdade. Em vez de fazer um escândalo, explicava que aquilo não era certo e pedia para devolverem. Esse tipo de mentirinha não me preocupa tanto, acho natural da idade. Me preocupo mais com as mentiras das mais velhas. Percebo que na entrada da adolescência, minhas filhas começaram a mentir mais:  estão crescendo, enfrentando um novo mundo, tem outra noção da realidade, não querem falhar. Isso sim me preocupa e fico atenta. Mas deixo claro que não aceito mentira em casa, que falamos a verdade e lidamos com as consequências delas” conta. 

Para os especialistas, não devemos reduzir a mentira a um denominador comum e classificar todas dentro de uma mesma categoria ou achar as mesmas soluções para lidar com elas. Para eles, cada mentira diz alguma coisa. “Temos que olhar cada criança, adolescente e adulto como único. Muitas vezes, o medo do sofrimento nos faz tentar fugir da realidade e nos enganando. Por isso, preenchemos os espaços vazios com explicações imaginárias ou fantasiosas, de maneira automática. As mentirinhas bobas, deixe pra lá. As grade mentiras, no entanto, são sintoma de algo maior, de algo que não pode ser dito. Ela fala por si só. Ninguém mente do nada – mente-se quando a verdade é intolerável para si ou para o outro e não vamos dar conta de lidar com ela. A verdade aparece quando há confiança mútua – por pior que seja a verdade, a gente consegue lidar com ela” afirma Patrícia. 

Outra forma interessante de tratar o assunto é usando as artes. Samareh Shams, mãe de uma menina e de um menino de 7 e 6 anos, respectivamente, conta que quando sua filha estava com 6 anos, certo dia, notou que havia materiais escolares em seu estojo que não lhe pertenciam. Ao ser questionada, a menina afirmou ter ganhado os objetos dos colegas. A mãe, mesmo sabendo que não era verdade, ao invés de acusar a criança e assustá-la com o título de “mentirosa”, decidiu tratar do assunto de um jeito lúdico. Com auxílio do pai, improvisaram uma peça de teatro retratando duas situações. Uma com uma personagem agindo de forma veraz e outra com a personagem exemplificando um comportamento desonesto. “Percebemos que ela entendeu a forma mais adequada de agir e depois desse dia, nunca mais passamos por situações parecidas”, conta.

 

Faça o que eu digo…

Como tudo na educação, não basta nada dizer uma coisa e fazer tudo diferente. Muito mais persuasivo que pregar como os filhos devem agir, é se portar como quer que eles ajam. “A atitude dos pais é muito importante. As crianças aprendem muito mais pela atitude, pelo o que é demonstrado  do que pelo é dito. Não adianta falar “Meu filho, não minta”e os pais mentirem”, afirma Patrícia. 

Ela ressalta que é usual ver mães e pais praticarem pequenas e aparentemente inocentes mentiras– como mentir a idade do filho para pagar menos no parque ou restaurante ou para poder entrar em algum filme, por exemplo. “A mensagem que passa é que aquilo é aceito.  A questão dos RG’s falsos também é muito séria. Se pode mentir para ver um filme, beber ou sair com os amigos, pode mentir para o resto? Passa-se a mensagem perigosa de que existe a lei, mas damos “um jeitinho” e que tudo é passível de ser manipulado. Isso induz a criança a mentir para conseguir o que quer. E isso é muito sério”, alerta.

 

Mentiras sinceras?

No entanto, que pai ou mãe nunca sofreu – e riu, depois – diante do constrangimento do filho dizer uma verdade nua, crua e dolorida a algum parente ou familiar – ou, pior, ser desmentido em público por aquela criança super sincera? “Nossa, tio, porque seu dente é assim tooooodo amarelo?”.“Não, papai, nós não fomos na festa porque a mamãe disse que não queria encontrar o chefe dela, lembra? Eu não estava doente não!”

Ou seja, para o professor Lee, de Toronto, são os pais que justamente ensinam as crianças a mentirem. “Crianças são incentivadas a contarem mentiras sociais. Por exemplo, quando ganham um presente de aniversário e não gostam, os pais querem que seus filhos sejam educados e acabam os ensinando a dizerem mentiras. No entanto, é possível ensinar a criança a mostrar gratidão, ainda que o presente não seja algo do seu agrado”

Danielle, que vive rodeada de crianças, concorda como é importante que os pais não estimulem ou acobertem a mentira. “Vejo muitos pais incentivando a mentira. Seu filho esqueceu o livro em casa – e você fala: diga à professora que perdeu.” E o que era para ser um aprendizado, mesmo que sofrido, do que é consequência e ação e reação, vira um aprendizado de como usar a mentira para fugir das suas responsabilidades.  “Eu mesma me peguei mentindo, para proteger minha filha, que estava sofrendo bullying na escola e, um dia, me pediu para não ir. Não queria que ela tivesse mais um dia difícil, então falei para a professora que ela estava doente e não poderia à aula. Me arrependi”, narra.

Em busca de ter uma relação absolutamente honesta e não incentivar a mentira em casa, a administradora Maria Lívia Pilon decidiu adotar, com os filhos pequenos, uma educação baseada apenas em verdades, na proporção que julga adequada para cada fase do crescimento das crianças. “Nunca falei de Papai Noel e Coelhinho da Páscoa, por exemplo. Quando me perguntaram, eu expliquei que eles viriam sim, mas eram personagens e não pessoas reais, como nós. Nunca foi um trauma e acho que construí uma base sólida e consistente, em que não mentimos para eles e eles não mentem para a gente. Não sei se por isso ou não, mas nunca tive que lidar com mentiras ditas pelos meus filhos para a família ou na escola”.

*Nomes fictícios, criados para proteger a identidade dos entrevistados


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