A mãe ou pai que nunca perdeu a cabeça diante de uma birra ou malcriação do filho, que atire a primeira pedra. Muitos são os momentos em que adultos são desafiados pelos pequenos que, em plena formação de caráter e testando limites e consequências de suas ações, levam seus educadores à beira do descontrole. No entanto, nesse momento de fúria e frustração há ao menos dois caminhos a seguir: manter o controle e buscar uma forma pacífica de lidar com a situação ou, jogar a racionalidade às favas, deixar-se levar pelo ímpeto e partir para a agressão física “corretiva” em seus filhos.

 

Os dois lados

As duas correntes têm seus argumentos na ponta da língua: uma defende que as, aparentemente inocentes, palmadas e beliscões na crianças são sim uma forma de violência e que, como tal, servem apenas para mostrar, na força bruta e sem argumentos verbais, quem manda no pedaço. Críticos a essa postura são contundentes em dizer que, com essa punição, a criança não se sente orientada ou cuidada, mas apenas acuada, violentada e com medo – além de aprender que, um dia, deverá agir da mesma forma quando contrariada ou insatisfeita com alguém.

A psicóloga Carla Poppa, doutora em desenvolvimento e psicoterapia de crianças, é categórica ao alertar: “Quando apanha, a criança sente vergonha, raiva, medo, tristeza. Com o tempo, o medo e o ressentimento que a criança sente quando é agredida criam uma barreira na relação com os pais, que a impede de compartilhar seus sentimentos e experiências com eles. A longo prazo, as palmadas impedem que os pais possam ser o ponto de apoio e confiança da criança para orientá-la em diferentes situações da vida.”

Além disso, um estudo realizado pela Universidade do Texas em parceria com a Universidade de Michigan e que avaliou mais de 160 mil crianças ao longo de 50 anos trouxe mais uma importante informação para a cena: constatou que quanto mais as crianças são punidas com castigos físicos, mais elas desafiam seus pais e apresentam comportamento antissociais, agressividade, problemas de saúde mental e dificuldades cognitivas. Os adultos que haviam recebido palmada quando crianças também mostraram-se mais propensos a defender a punição física em seus filhos, provando que a atitude violenta pode ser transmitida de geração em geração. 

Já o segundo grupo, convicto de que “um tapinha não dói” e que uma boa palmada conserta qualquer problema justifica que, assim, a criança nunca mais repetirá a atitude. Também alegam que não cabe ao Estado intervir nos meios de educação de cada família. Na maioria das vezes, pais que usam o método se justificam dizendo que apanharam dos seus próprios pais e que estão perfeitamente bem hoje em dia.

 

Consequências

No entanto, essa postura, cada vez mais questionada hoje, tem contra si diversos estudos científicos que confirmam a teoria de que a palmada não ensina e pode, inclusive causar prejuízos ao desenvolvimento infantil. Uma outra pesquisa recentemente realizada pela mesma Universidade do Texas mostrou que as crianças que sofreram algum tipo de punição física dos pais antes dos 5 anos desenvolveram comportamentos problemáticos mais tarde.

“Quando as agressões são frequentes e muito intensas e a relação se torna abusiva, a criança permanece em contato constante com os hormônios de estresse – o que provoca um trauma no seu desenvolvimento e pode fazer com que, no futuro, elas tenham mais dificuldade para regular suas emoções. Além disso, nesses casos mais extremos, as crianças passam a estabelecer este mesmo tipo de relação com as pessoas com as quais vão conviver ao longo da vida. Com isso, a probabilidade de manterem relacionamentos abusivos na vida adulta é alta”, afirma Carla.

A publicitária Sara (nome fictício) sentiu, na pele, as consequências das palmadas. Como muitas crianças crescidas nos anos 80 e 90, foi educada na base de tapas e beliscões e assegura: “A criança agredida obedece por medo, não por respeito. Você não vê seus pais como parceiros de vida e sente-se acuada, sozinha. Cresci insegura, mas com a certeza de que posso educar meus filhos, hoje, de uma forma diferente: impondo limites com diálogo, com respeito ao corpo deles, em uma relação construída em confiança mútua”.

 


Saiba o que fazer quando a criança não obedece


 

A Lei da Palmada

A Lei da Palmada, popularmente batizada de “Lei Menino Bernardo” – em homenagem ao trágico caso em que o garoto Bernardo Boldrini teria sido assassinado pelo pai, pela madrasta e por uma amiga dela no interior do Rio Grande do Sul -, foi aprovada pelo Senado em 2014 e veio para colocar um limite às violências praticadas por adultos contra a criança, em nome do seu bem-estar e educação. 

Segundo  a Lei:

 A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.” 

Ou seja, independente da justificativa, quer por explosão momentânea ou por convicção de método educativo, o uso da força física como punição a crianças deixou de ser um assunto de dentro de casa para ganhar atenção da Justiça. Hoje, no Brasil, como já acontece em cerca de outros 60 países do mundo (como Argentina, Áustria, Dinamarca, Alemanha, Portugal, Espanha, Suécia, etc), o adulto que bater na criança será julgado e poderá sofrer as seguintes consequências:

  1. Encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
  2.  Encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
  3.  Encaminhamento a cursos ou programas de orientação;
  4.  Advertência do Conselho Tutelar.

A criança agredida, por sua vez, deverá ser encaminhada a tratamento especializado. Além disso, o profissional de saúde, de educação ou assistência social que souber da agressão e não relatá-la às autoridades poderá pagar multa de três a 20 salários mínimos. 
Ao lado da lei, está a comunidade médica e os profissionais de saúde. A Academia Americana de Pediatria, por exemplo, foi contundente ao declarar recentemente que a agressão física como instrumento educativo é ineficiente e prejudicial. O grupo composto por 67 mil médicos lançou um documento, em 2018, recomendando que pediatras orientem as famílias a não baterem nos filhos, além de não usar punições como humilhação, amedrontamento ou ameaças. “Uma das relações mais importantes que temos é com nós mesmos e com nossos pais. E faz sentido eliminar ou limitar o medo e a violência nessa relação de afeto”, afirmou Dr. Robert D. Sege, pediatra do Tufts Medical Center e do Floating Hospital for Children e um dos autores do documento.

 

Diálogo e confiança

Mas, como então impor limites e corrigir comportamentos mais graves por parte das crianças? Para Carla Poppa, a saída é a velha e boa conversa. 

Com diálogo e confiança, ela diz, o limite poder ser colocado de uma maneira mais tranquila e quanto mais os filhos confiarem e estiverem abertos para ouvir o que os pais têm a dizer – e isso é construído no dia a dia, na medida em que os pais se colocam como pessoas que são capazes de ajudar a criança a enfrentar os inúmeros desafios que a vida apresenta.

Quando existe este vínculo de confiança, o momento de colocar um limite tende a ser mais tranquilo porque a criança está aberta para escutar os argumentos dos pais. Eles, por sua vez, devem tentar entender o sentido daquele comportamento e oferecer, sempre que possível, uma oportunidade de reparação do erro que a criança cometeu. Essa habilidade vai ser essencial na vida adulta de seus filhos: saber consertar os erros, em vez de ficar apavorado e paralisado – uma das consequências de se educar uma criança utilizando apenas técnicas de punição”.

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