Eu estava há alguns anos em São Paulo e, na nova cidade, já havia dado aulas para advogados, crianças e adolescentes. Estava muito feliz em uma grande escola da capital paulista, trabalhando em uma comunidade multicultural, ampliando minha formação profissional no Brasil e no exterior, quando a ideia de abrir uma escola começou a fazer cada vez mais sentido. No começo do empreendimento, as famílias tinham meu telefone pessoal e me ligavam, muitas vezes, no meio da noite, aos fins de semana, para tirar dúvidas, expor queixas ou mesmo só para desabafar. Nos dois primeiros anos da escola, muitos pais e mães tinham acesso direto à diretora, 24 horas por dia. Confesso que, em alguns, momentos, senti falta das provas para corrigir, das aulas para preparar. O atendimento às famílias sempre nos envolve na intimidade do casal, nos dramas e consequentemente a gente se comove e, nem sempre, consegue acompanhar o desfecho de cada caso, apenas torce para que tudo tenha dado certo. A família, muitas vezes, precisa de um ouvinte, de um conselho, mas não necessariamente se sente confortável em expor os detalhes de cada caso. Sempre optei por ir até onde minha presença fosse bem-vinda, o que, em muitos casos, não envolvia tomar conhecimento dos momentos pós-crise. Lembro de estar almoçando no Rio de Janeiro, com a minha família, e ficar mais de uma hora com uma mãe ao telefone, desesperada com as birras do filho e com a sobrecarga de responsabilidade, dado que o marido viajava muito a trabalho e a cobrava bastante pelo comportamento do menino. A relação entre mim e a minha pequena comunidade escolar era muito próxima e o contato a qualquer hora variava do envio de fotos com bumbuns assados a crises com a babá. Toda dúvida poderia ser tema de uma ligação inesperada. 

Nenhuma faculdade de pedagogia ou curso de administração de empresas te prepara para situações como essa. Alguns livros e autores especialistas podem inclusive dizer que esse contato tão próximo é prejudicial à relação com a família e consequentemente, no meu caso, prejudicial à relação com o cliente. Em que momentos da vida, profissional ou pessoal, a gente escolhe, conscientemente, não “play by the book”, não “fazer como manda a cartilha”? Lembro de uma mãe me ligar desesperada às 21h30, porque o filho mais velho, de dois anos, chorava desesperado querendo a chupeta de volta. Ela estava sozinha, completamente desnorteada, com o filho recém-nascido também aos prantos, dado o barulho e a gritaria na casa. Muito nervosa, trancou o filho mais velho no quarto, pegou o telefone com o recém-nascido no colo e me ligou. Ao telefone, a mãe estrangeira, sem familiares em São Paulo, explicou que o filho de dois anos havia passado a semana bem agressivo, por falta da chupeta e também pela chegada do irmão mais novo à casa. Naquela noite em especial, a crise atingiu seu ápice. Enquanto estávamos no telefone, eu conseguia ouvir o choro que vinha do quarto em que o menino estava trancado. Todos naquela casa e, em especial, aquela mãe, precisavam se acalmar, para que pudessem seguir. Perguntei a ela se ela se arrependia de ter tirado a chupeta do mais velho nesse momento de tantas mudanças, com a chegada do irmão mais novo. Ela disse que sim. Era a minha deixa para ajudar, ainda que fugisse às regras dos livros. Eu disse a ela: então, garanta que seu recém-nascido esteja seguro e vá até o quarto, converse com seu filho mais velho e devolva a chupeta. Você precisa estar bem para amamentar e para cuidar dos dois bebês, não há vergonha nenhuma em voltar atrás. O estresse havia feito aquela mãe tomar péssimas decisões, como a de trancar o menino no quarto sozinho, voltar atrás era uma questão de sobrevivência. Interromper um processo como esse e ceder às demandas da criança pode não ser o conselho dos livros e manuais especializados, mas garantiu noite mais tranquila para essa família em um momento muito delicado e especial.  

A Academia Americana de Pediatria (AAP) recomenda que, antes dos dois anos, as crianças não tenham nenhum contato com telas, o que inclui smartphones, tablets, notebooks, televisão etc. Dos dois aos cinco anos, a AAP limita a exposição às telas a uma hora por dia. As crianças nessa fase precisam de estímulos sensório-motores que as telas não conseguem oferecer. Ao mesmo tempo, precisam da interação com outros adultos e outras crianças para um desenvolvimento socioemocional saudável, as telas, mais uma vez, isolam ao invés de integrar. Já conheci e acompanhei várias escolhas quando o tema são telas em geral e consequentemente tudo que vem por trás das telas, o contato com desenhos animados, jogos virtuais etc. Crianças que, aos dois anos, realmente nunca tinham sido expostas por tempo significativo, vamos desconsiderar o olhar de relance na casa da avó, à nenhuma tela. Chegavam à escola e não conheciam os personagens infantis da moda, por exemplo, ou brinquedos licenciados populares entres as crianças. Conheci ainda crianças que só conseguiam comer em frente à tela, que choravam muito ou simplesmente não comiam na escola, porque nós não tínhamos um celular ou um tablet com um vídeo para distraí-la. Na minha escola, não temos brinquedos licenciados ou telas, mas os alunos eventualmente levam seus próprios brinquedos, vão fantasiados, enfim, os personagens batem à nossa porta de uma forma ou de outra. A escola, assim como as famílias, está inserida na sociedade e é difícil, eu diria até mesmo artificial, fingir que essa realidade externa não existe. Na primeira infância, podemos e devemos nos blindar do uso das telas, principalmente quando esse uso é abusivo, mas não podemos fechar os olhos para a realidade ao redor das famílias. Já visitei berçários, muitos, em que, em cada sala, de cada grupamento, havia uma televisão. Nesse caso, não é só uma questão de seguir a recomendação da AAP, mas de não acreditar no quanto estímulos variados são importantes para o desenvolvimento da criança. Sobretudo nessa primeira etapa da vida, os seis primeiros anos, brincar, tocar, sentir, estimular é crucial para a formação do cérebro da criança. 

Mas se você é uma mãe ou um pai que vive ao telefone, por que com seu filho seria diferente? Porque precisa ser! Você é adulto e suas falhas não precisam ser as do seu filho. Educamos pelo exemplo, isso é fato. Se conseguirmos, se pudermos ficar menos ao telefone, melhor, em especial, à mesa, durante as refeições, em eventos sociais em que a interação presencial com outros é o foco. Se houver outras crianças no espaço, se houver outras possibilidades de brincadeira, o celular não deve ser uma opção. Que fiquem os dois, seu filho e o primo mais novo, sozinhos, ociosos, entediados, mas que não fiquem isolados em seus próprios aparelhos. Vamos acreditar na criatividade das crianças, elas vão “arrumar o que fazer” e, muitas vezes, isso vai ser muito mais divertido do que o App no celular. E se, nesse caso, você estiver com dificuldades de educar pelo exemplo, é hora de se posicionar como o adulto da relação. Nem sempre é a melhor opção, mas cabe um: “você não tem idade para isso”. Ficar tanto tempo no celular é um mau vício que deveria estar restrito ao universo dos adultos. As crianças precisam explorar outras possibilidades e não vamos excluir o ócio e o tédio dessa lista. Bento e Joaquim descobriram os jogos de celular através dos primos, nas férias. Depois desse encontro, limitei o uso aos fins de semana, mas, aos fins de semana, as atividades são tantas que, muitas vezes, eles esquecem. Como Bento e Joaquim têm a idade próxima e um é sempre companhia do outro, com o tempo, consegui substituir os apps pelos “monta-monta” como chamam os quebra-cabeça, que agora estão tão em moda lá em casa quanto os joguinhos de celular. 

Difícil mesmo é lidar com o ócio e o tédio de uma criança de 3 anos, sentada à mesa de um restaurante… Não sei quais são as recomendações da AAP para situações como essa, mas sei as recomendações de uma vasta gama de pedagogos, psicólogos e tantos outros especialistas que juram que um papel e um giz de cera irão entreter uma criança, duas, três crianças (sim, especialistas, as pessoas têm mais de um filho e, muitas vezes, nenhuma ajuda) sentadas à mesa pelo tempo de uma refeição completa. Já me senti, como educadora, um fracasso por não conseguir seguir os livros à risca, já repeti para mim mesma, enquanto pregava para outros a cartilha, o provérbio “em casa de ferreiro, espeto de pau”, a fim de justificar minhas falhas. Mas, na verdade, a tela, algumas vezes, melhor ainda se associada ao papel, ao giz de cera, à massinha, pode garantir um almoço em família mais tranquilo. Há dias, em que, as famílias precisam de um descanso e só querem mesmo é comer em paz. Com que frequência isso se repete? Quanto tempo a exposição à tela dura? O quanto a criança demanda? Não há especialista da AAP que consiga definir. Só mesmo cada pai, cada mãe, dotado de bom senso, pode fazer juízo de valor e definir a regra da sua própria família. Os prós e contras de todas as escolhas estão no Google, nos documentos oficiais, nos pareceres técnicos. Que as escolhas sejam conscientes e tenham como prioridade o bem-estar da criança dentro da realidade possível. E, se você é uma daquelas mães que nunca mostrou um celular para seu filho, que nunca permitiu um desenho animado, e torce o nariz para a outra mãe com DVD no carro e celular na bolsa, parabéns, mas vá cuidar da sua família!

Autor(a)

Escrever um comentário