Nunca se tornou tão necessária a reflexão sobre como estamos – ou deveríamos – estar educando nosso filhos (brancos e negros) para se tornarem crianças antirracistas e serem mais uma força na luta pela equidade racial.
Desde o início do movimento Black Lives Matter no Brasil e no mundo todo, pais e educadores tem parado para refletir sobre como podem levar a discussão – e a atitude – de igualdade de direitos raciais à esfera da educação, para crianças e jovens de tantos países.
As respostas não são fáceis, nem únicas, muito menos unânimes. Mas, segundo Hilceia Patriarca, psicanalista e autora de “A subjetividade da psique preta: como uma herança da ancestralidade de sofrimento, ódio e culpa se inter-relaciona com a estrutura sadomasoquista”, o caminho está no diálogo. “Pais pretos devem aproximar a criança de conteúdos relacionados à história real dos antepassados, mas também de pessoas negras que possam inspirá-las, qualquer que seja o setor de atuação. Fui criada numa escola tradicional de Salvador e eu e minha irmã éramos as únicas negras do colégio. Sofri preconceito, sim, pelas freiras da escola que eram racistas na forma de tratar. Não éramos escolhidas como destaque para nada. A solução foi embranquecer para não sucumbir, para poder fazer parte.” Mas, segundo a soteropolitana, as marcas do racismo não são facilmente apagadas. “Uma criança que sofre preconceito desenvolve baixa autoestima, além de senso de não pertencimento, de submissão que se reproduzirá nas suas relações quando adulto.”
A diferença dentro de casa
Justamente para evitar que esses traços sejam impressos na personalidade e na história de sua prole é que o brasileiro Mário Vieira, que vive em Atlanta desde 2010, faz de tudo para criar seus filhos – loiros e negros – de forma igual. O mineiro tem 4 filhos biológicos com a americana Christi – e, juntos, adotaram mais 5 crianças de uma mesma mãe, que faleceu e os deixou sozinhos. Ligado à igreja local, o casal viu na adoção uma forma de ajudar a comunidade e servir à religião. Hoje, já possuem a guarda de mais 10 crianças – dos 4 aos 21 anos (foto). “Infelizmente vivemos hoje num mundo cruel. Antigamente, a diferença de tratamento entre brancos e negros era visível e palpável. Hoje ela ainda existe, porém disfarçada. Graças a Deus, vivemos num ambiente cristão e respeitoso – e dentro do nosso ambiente de convívio, as pessoas amigas, escola, vizinhos e igreja veem com bons olhos essa diversidade. Às vezes eu noto até um certo tratamento mais “carinhoso” ou “cuidadoso” com relação aos meus “meninos pretinhos” (carinhosamente como os chamo), por talvez as pessoas pensarem que por eles serem negros, precisam ser “super valorizados”. Mas, no final, dentro da em casa e na minha comunidade, as crianças são tratada iguais.”
Tratamento igual, aparentemente tão fácil de ser executado, não é tão simples em muitos casos. Em outros, até, são evitados e combatidos com certa veemência . Para Clélia Rosa, ativista negra, pedagoga que trata das questões raciais na infância e mãe de duas meninas, devemos parar de querer fingir que somos todos iguais e assumir as diferenças. “Quem fala que todos tem tratamento igual são os pais brancos. Parem de dizer para as crianças que somos todos iguais. Temos consciência que não somos iguais – queríamos ser, mas não somos. Quem disse que somos todos iguais é privilegiado. A mãe preta sabe que seu filho é diferente. Precisamos enxergar a diferença. Estamos falando do ponto de partida, não de chegada.”
Dra. Eboni Hollier, pediatra americana em entrevista para o HuffPost concorda com Clélia e defende que muitos pais tem boas intenções quando decidem em não falar sobre raça com seus filhos, mas isso pode ser perigoso no futuro. “Muitos pais querem preservar a inocência da criança ou simplesmente evitar o próprio desconforto com o assunto. No entanto, escolher em não falar com seus filhos sobre raça tem consequências muitos mais graves a longo prazo. Não podemos esconder. Não podemos desviar. Não podemos fingir que o racismo na existe.”
Outra voz de peso nesse coro é Ligia Moreiras, autora do livro Criando com Amor em tempos de ódio. Ela fala: “desde cedo, e na medida da capacidade de compreensão das crianças, é preciso falar sobre privilégios, explicar sobre facilidades e dificuldades que são inerentes a questão racial. Porque quanto mais cedo entendemos os privilégios que temos, mais cedo temos condição de utilizá-los como ferramentas de mudança, desde a infância. As crianças precisam se sentir seguras para denunciar o racismo que percebem ao seu redor”.
Vamos falar sobre racismo
Mas como abordar o tema – tão delicado – sem causar traumas, nem salientar relações hierárquicas desiguais e retrogradas, nem tampouco repetir padrões já tão incrustados na nossa cultura? Luã Andrade, da página Escurecendo Fatos, afirma que para criar crianças antirracistas é preciso que crianças brancas “tenham relações com negros, mas não de subalternidade. Quando a criança branca tem relações com o negro em que ela tem, hierarquicamente, superioridade, o laço é construído em cima da superioridade.” Na escola, segundo ele, os professores devem contar a verdadeiro história da escravidão, enaltecendo o protagonismo negro, a importância dos quilombos, das heroínas negras, etc. “Também devemos oferecer entretenimento negro – desenhos e livros que tenham negros como protagonistas, por exemplo. Os produtos da indústria cultural tem um impacto gigantesco no imaginário infantil.”
Por fim, Luã acrescenta: explique o privilégio social. “Diga que população negra tem os piores indicadores sociais, menor escolarização, salários, menos acesso a bens e serviços, maior índice de mortalidade. Isso tudo irá mostrar a desigualdade racial brasileira. E, o principal: crianças aprendem emulando o que vem – logo, temos como adultos um papel muito importante. Dê exemplos de combate ao racismo e indignação diante de atos racistas.”
Hilceia endossa a necessidade de, sermos nos, pais e educadores os modelos do que queremos ensinar – como sempre funciona na educação dos pequenos. “Pais de brancos devem entender o racismo como algo cruel e fazer com que seus filhos circulem e respeitem pessoas que não são iguais. A palavra mais adequada no meu ponto de vista é respeito – o fato de ser diferente não nos faz melhor ou pior. O negro, no entanto, precisa ter o fortalecimento da estrutura psíquica pra poder ser capaz de responder às dores que afetam a alma.”
A ajuda extra da UNICEF
No dia 4 de junho, diante de tantas discussões sobre os temas antirracistas incitados pleo movimento Black Lives Matter, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) Brasil reativou a campanha “Por uma infância sem racismo”. Baseada na ideia de ação em rede, a iniciativa reúne 10 ações ou comportamentos que cada pessoa pode adotar para assegurar o respeito e a igualdade étnico e racial desde os primeiros anos de vida.
Confira as 10 maneiras de contribuir para uma infância sem racismo – e coloque-as em prática em casa ou na escola:
- Eduque as crianças para o respeito à diferença. Ela está nos tipos de brinquedos, nas línguas faladas, nos vários costumes entre os amigos e pessoas de diferentes culturas, raças e etnias. As diferenças enriquecem nosso conhecimento.
- Textos, histórias, olhares, piadas e expressões podem ser estigmatizantes com outras crianças, culturas e tradições. Indigne-se e esteja alerta se isso acontecer – contextualize e sensibilize!
- Não classifique o outro pela cor da pele; o essencial você ainda não viu. Lembre-se: racismo é crime.
- Se seu filho ou filha foi discriminado, abrace-o, apoie-o. Mostre-lhe que a diferença entre as pessoas é legal e que cada um pode usufruir de seus direitos igualmente. Toda criança tem o direito de crescer sem ser discriminada.
- Denuncie! Em todos os casos de discriminação, busque defesa no conselho tutelar, nas ouvidorias dos serviços públicos, na OAB e nas delegacias de proteção à infância e adolescência. A discriminação é uma violação de direitos.
- Proporcione e estimule a convivência de crianças de diferentes raças e etnias nas brincadeiras, nas salas de aula, em casa ou em qualquer outro lugar.
- Valorize e incentive o comportamento respeitoso e sem preconceito em relação à diversidade étnica e racial.
- Muitas empresas estão revendo sua política de seleção e pessoal com base na multiculturalidade e na igualdade racial. Procure saber se o local onde trabalha participa também dessa agenda. Se não, fale disso com seus colegas e supervisores.
- Órgãos públicos de saúde e de assistência social estão trabalhando com rotinas de atendimento sem discriminação para famílias indígenas e negras. Você pode cobrar essa postura dos serviços de saúde e sociais da sua cidade. Valorize as iniciativas nesse sentido.
- As escolas são grandes espaços de aprendizagem. Em muitas, as crianças e os adolescentes estão aprendendo sobre a história e a cultura dos povos indígenas e da população negra; e como enfrentar o racismo. Ajude a escola de seus filhos a também adotar essa postura.
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Como falar com as crianças sobre o racismo