Desde que minha casa se converteu em playground, sala de aula, escritório e casa propriamente, desde que meus filhos deixaram de encontrar outras crianças, desde que minha rede de apoio começou a se desfazer, desde que parei de encontrar meus familiares e amigos, desde que comecei a pensar constantemente no número de mortes e na taxa de ocupação dos leitos de UTI, me sinto cansada. Apesar de estar em casa, de brincar constantemente com meus filhos, de acompanhar as atividades da escola de cada um, de estar mais perto daqueles que amo, me sinto cansada. Se eu postasse esse desabafo em alguma rede social, certamente esbarraria com alguma companheira de jornada, mãe como eu, dizendo: “Ué, quem mandou ter filho, então? Ter filho é isso aí”. Algumas sairiam em minha defesa, claro, teriam empatia. Os pais, mais introvertidos, provavelmente, não se manifestariam. Mas, desde que o distanciamento social, a quarentena, o isolamento, ou o que quer que seja que estamos fazendo, começou, sinto esse cansaço. Ninguém pode mesmo confundir o que estamos vivendo com “férias”, não só pelos motivos óbvios, mas porque vivemos com medo e cansados. Os impactos da Pandemia sobre as mulheres foram e serão devastadores. Sobrecarga de trabalho doméstico, responsabilidade sobre as tarefas da escola dos filhos, retorno ao trabalho sem escola e sem rede de apoio, ameaça de fim de carreira pelo simples fato de ser mãe. Deixa eu explicar melhor, porque, talvez, quem não seja mãe, não esteja me entendendo muito bem.
Nas primeiras semanas do isolamento social, segui à risca todo o calendário de atividades enviado pela escola, reuniões via Zoom pela manhã, roteiro de atividades ao longo do dia, registro de fotos postado para a educadora. Uma rotina escolar para o meu filho mais velho e outra para o meu filho mais novo, já que eles estudam em escolas diferentes. Meus filhos perguntavam por que não podiam estar com os amigos, por que não brincavam com outras crianças, por que não podiam ver as tias e os primos, e, principalmente, quando o coronavírus ia passar. Doía o coração de mãe. Sou empresária e meu negócio, uma escola, como todas as outras, está fechada. No início, houve o processo de acomodar o ensino a um novo formato, de levar a aula até os alunos, em casa. Desafio para a profissional, principalmente porque atendo alunos de educação infantil, que precisam do concreto para aprender. Comecei a trabalhar ainda no ensino médio e, como empresária, não tive licença maternidade em nenhuma das minhas gestações. Com a escola fechada, eu estava em casa, todos os dias, o dia inteiro. Estressante para a mulher, essa mudança de rotina brusca, em condições tão adversas. Com tudo isso dito, ainda assim, sei que estou nesta tempestade em um barco muito confortável e que há mães, muitas delas solteiras, navegando esta quarentena com seus filhos em botes ou simplesmente vestindo coletes salva-vidas. São mães, profissionais e mulheres cansadas, mas que, como eu, continuam sobrevivendo.
Vestir a roupa da mulher maravilha nos faz pagar um preço altíssimo. Hesitamos em dizer que estamos cansadas, que precisamos de ajuda, que queremos nossa rede de apoio de volta, porque outros pensarão que “não damos conta”, que não somos “mães de verdade” ou pior que não amamos nossos filhos. O preço que a heroína paga é emocionalmente muito caro, muito mais caro do que o cansaço físico de lavar roupa, fazer as lições com o filho, colocar o jantar na mesa e fazer videoconferência com o pessoal do trabalho. As vozes externas e aquela vozinha interna ficam repetindo: “teve filho, pra quê?”, “casou, pra quê?”. No fim do segundo mês de ensino flexível, ensino à distância, ensino remoto, homeschooling ou o que quer que seja que estamos fazendo, desisti de tentar seguir dois cronogramas de estudos. Como sou profissional de educação, criei uma rotina de atividades que eu pudesse seguir com os meus dois filhos. Continuei a comunicação com as escolas, mas flexibilizei o programa para algo possível, dentro da minha realidade. Descobri que é difícil ser professora dos próprios filhos, na sua própria casa, enquanto tenta não se assustar com o aumento do número de casos de coronavírus ou se preocupar com a queda de receita da sua empresa. Imagino que, para as mães, sim as pesquisas mostraram que as mulheres assumiram as rédeas do ensino remoto nesta pandemia, não educadoras, tenha sido, mais uma vez, como navegar nesta tempestade em um bote. Uma conhecida me disse que sofreu uma queda de pressão, no sentido literal, não figurado, ao tentar fazer a filha pintar uma folha de árvore sob um papel sulfite. Definitivamente não estamos sob condições normais. E não podemos ter vergonha de dizer que estamos cansadas. É cansaço, mas não inércia. Continuamos seguindo.
Novamente imagino esse relato em uma rede social e uma enxurrada de comentários dizendo “estou vivendo um sonho, a cada dia com mais energia”. Ótimo, mas não faça alguém se sentir pior por estar se sentindo mal. Por algum tempo, questionei se desejava realmente que as escolas reabrissem, ainda que a escola seja o meu trabalho, o meu negócio. Um dos meus filhos não estuda na minha escola e eu me perguntava se ele retornaria à sala de aula, caso fosse possível. Completamos 90 dias de escolas fechadas e as instituições tiveram tempo para se preparar, para se organizar, para se reformular. Conversei com professores, mantenedores, diretores da rede pública e da rede privada, e, infelizmente, em especial para os alunos, alguns navegam esta tempestade em iates de 9 alunos por sala e totens de álcool gel enquanto outros nadam em grupos de 30, com medo de faltar água e sabão para higienizar as mãos. Eu estou cansada, mas amo os meus filhos. Jamais os colocaria em risco. Hoje acho que estariam seguros em suas escolas. Há mães que podem dizer o mesmo. Há mães que, infelizmente, não podem dizer o mesmo. Ainda que muitas mulheres tenham continuado trabalhando ou estejam voltando ao trabalho, todas as escolas permanecem fechadas. Nenhuma rede de apoio formal foi restabelecida. Com os avós no grupo de risco e o contato restrito (ou nulo) com vizinhos e amigos, não há rede apoio, em especial para as mães solteiras. A Pandemia acentuou toda e qualquer tipo de disparidade social, sem poupar mulheres e crianças. Na verdade, mulheres e crianças foram as primeiras a serem jogadas nesse mar de estresse tóxico: “preciso ir trabalhar, com quem vou deixar meu filho?”, “vou perder meu emprego”, “se pegar o ônibus, vou ficar doente?”, “minha mãe não para de gritar”, “vou precisar repetir o ano?”, “minha mãe vai me tirar da escola?”, “vou perder meus amigos?”. Isso sem falar na violência doméstica, no abuso infantil, em questões muito mais sérias que infelizmente foram agravadas durante esse tempo em casa. Faz a gente pensar mais seriamente sobre como a casa, o lar, do outro pode ser bem diferente do nosso e tão mais inseguro.
90 dias depois do que quer que seja que fizemos, precisamos de uma dose extra de empatia. O “fique em casa”, aos poucos, precisou se transformar no “e, se puder, fique em casa”. Alguns percorrem essa quarentena e têm gás psicológico e financeiro para enfrentar um lockdown. “Eu não vou mandar meus filhos para a escola este ano”. “Eu continuo pagando minha empregada mesmo que ela não venha trabalhar”. “Vou manter o isolamento até descobrirem uma vacina”. Quantos podem dizer o mesmo sem suas redes de apoio, sem emprego, sem renda fixa, sem lares estáveis? Quando tomamos a nossa realidade, muitas vezes, privilegiada, como gabarito para a vida, como única referência possível, não enxergamos os quatro filhos pequenos da manicure sem trabalho que não pode mais contar com a escola ou pagar a vizinha para olhar a filha mais nova. Segundo a teoria massacrante das redes sociais, com os R$ 600,00 de auxílio, essa manicure hipotética, mas totalmente possível, deveria continuar pagando a vizinha e manter os 4 filhos em casa, longe da escola, até a descoberta da vacina. Realidade totalmente impossível. Ou então vão dizer para essa mãe: “ah, também, quem mandou ter quatro filhos?” E se a explicação tiver que regredir a esse ponto, bate uma dose extra de cansaço. Felizmente e infelizmente, os diferentes precisarão ser tratados de formas diferentes. A mãe trabalhadora, o aluno da rede pública, o aluno da rede particular, o profissional autônomo, o profissional do grupo de risco, todos precisarão ser enxergados em suas realidades particulares, para que não sejam ainda mais penalizados. Quem mandou ter filho? Quem mandou ser mulher? Quem mandou ser mãe solteira? Poderia ser uma quarentener produtiva, maratonando Netflix, praticando Yoga online e curtindo live sertaneja. Não deu.