A Pandemia do Coronavírus tirou as crianças da escola, os pais dos escritórios, confinou todos juntos e ainda criou um terrível monstro invisível que transformou sair de casa em um atentado à própria vida. Tudo isso sem aviso prévio. Sem prazo de validade conhecido. Entramos para nossas casas e apartamentos com nossos um, dois, três filhos, laptops e muito papel higiênico. Com o tempo, perdemos o acesso às áreas de lazer e à nossa rede de apoio (cuidadoras, babás, empregadas, avós, vizinhas), dado que todos fora do nosso círculo familiar mais próximo passaram a ser vistos como um risco em potencial. No início, algumas vezes, o dia-a-dia remetia às férias. Estávamos mais próximos dos pequenos, escolas anteciparam férias, acreditando que as suspensões iriam durar apenas 1 mês, muitas babás e cuidadoras ainda estavam trabalhando. Com o tempo, o tempo foi aumentando muito, sem prazos ou perspectivas, as restrições foram se tornando maiores, salários reduzidos, volume de trabalho mantido ou ampliado, escolas retornando com atividades remotas, babás e empregadas impossíveis de custear, doentes, com medo de ficarem doentes ou em contato com familiares doentes. Fomos ficando mais sozinhos e mais isolados em nossas casas que viraram a um só tempo: escritório, escola, playground, restaurante, cinema etc. Os pais e mães da modernidade nunca se voluntariaram para uma maternidade ou paternidade nesses moldes: em casa, 24 horas por dia, sem nenhum tipo de suporte, acumulando todas as funções de profissional, pai/mãe, dono/dona de casa e companheiro/companheira. Nunca foi esse o plano de vida quando o homem ou a mulher moderna decidiu ter filho ou filhos, quando decidiu até mesmo se casar. Bom, essa era a situação e, de acordo com alguns infectologistas e matemáticos, poderá ser ainda a situação em que nos encontraremos algumas vezes no futuro.  

Acordar, deixar os filhos na escola, ir trabalhar, buscar os filhos na escola, voltar para casa. Acordar, deixar os filhos em casa com a cuidadora (vizinha, avó, babá, amiga), ir trabalhar, chegar em casa, esperar a cuidadora da noite ou dispensar a cuidadora do dia. Rotina padrão de muitas famílias contemporâneas em tempos normais. Acordar, servir café da manhã, brincar com os filhos, trabalhar, preparar o almoço, fazer as atividades da escola, limpar o banheiro ou lavar o cabelo? Durante a Pandemia, a rotina se perdeu e todo mundo precisou redefinir ou encontrar o seu lugar na família. O compartilhar das tarefas domésticas foi se ajustando, até por necessidade, mas, afinal, qual era o lugar da criança na casa, na rotina dos pais? Definir uma nova rotina e definir, nessa nova rotina, espaço para as necessidades não só de cuidado (dormir e comer na hora certa) mas também para as necessidades emocionais (brincar, conversar) e pedagógicas (atividades escolares remotas) foi e ainda será um desafio em muitos lares. Essa maternidade/ paternidade que vivenciamos durante a Pandemia nunca foi vivida antes pela nossa geração e talvez eu diria pela geração antes da nossa. Talvez as mulheres tenham experimentado uma situação parecida com essa durante a licença maternidade, enquanto ainda se recuperavam fisicamente do parto, amamentavam bebês recém-nascidos, mas tinham data limite para retomada das suas atividades regulares, o que, convenhamos, faz toda a diferença. As relações entre pais e filhos e as relações entre pais e escola talvez nunca mais sejam as mesmas após 2020. Talvez este seja parte do Novo Normal de que tanto se falou. 

Muitos pais mergulharam fundo na tarefa de não deixar seus filhos ociosos durante a quarentena. Atividades escolares, aulas remotas, vídeos educativos, brinquedos novos, sessões de cinema, acampamentos na sala, até que começaram a ser vencidos pelo tempo e pela exaustão emocional. Não só os pais que se colocaram nessa situação foram vencidos, as crianças também. Estressadas, irritadas, por estarem obrigatoriamente amarradas a uma rotina escolar dentro da própria casa. A quarentena foi, aos poucos, forçando todo mundo a desacelerar. Outros pais optaram, desde o início, a deixar os pequenos livres, sem nenhuma imposição de rotina ou de atividades mais estruturadas. Tempo de tela liberado, nenhuma atividade escolar. A Pandemia, para essas famílias, já estaria sendo estressante demais para as crianças. A quarentena foi, aos poucos, desgastando também essas famílias que perceberam seus filhos ociosos, igualmente irritados e estressados.  Como em um processo de luto pela perda da vida que tínhamos e nos foi tirada tão bruscamente, passamos um tempo em negação, “é só uma gripezinha”, “vai passar logo”, “esse é o remédio” etc. Chegamos à fase da raiva, das discussões acaloradas, dos pontos de vista extremados. Até que finalmente aceitamos e desaceleramos, saindo um pouco dos extremos, nem tanto à correria nem tanto à ociosidade. Por um tempo, professores foram responsabilizados pela falta de educação das crianças. Quando os pais tentaram ensinar seus próprios filhos em casa foram literalmente parar no hospital. Professores não sãos pais de seus alunos. Pais não são professores de seus filhos. A Pandemia deixou um pouquinho mais clara a posição de cada um. 

“Esse menino não lava um copo”. “Essa menina não arruma sua própria cama”. “Esse menino não sabe fazer uma conta”. “Essa menina não se concentra em nada”. O confinamento nos trouxe um conhecimento maior sobre nossos filhos. Esses pequenos desconhecidos sobre os quais os pais tinham notícia através da agenda escolar, das mensagens da cuidadora ou do breve bate-papo antes de dormir. Quantas alegrias. Quantas preocupações. Houve quem persistisse em culpar a escola. Houve quem se sentisse culpado. A Pandemia nos fez refletir sobre nossa parentalidade como nunca antes, fez com que enxergássemos nossos filhos como nunca antes. Qualquer retomada de rotina pós-pandemia levará a vida familiar a um outro patamar de importância ou, ao menos, colocará os filhos como ponto de maior interesse na vida de pais e mães. Não só porque, por um tempo, a vida de todos que amamos esteve em risco e precisou ser protegida, mas porque nunca estivemos tão próximos de nossos filhos e companheiros. Com laços fortalecidos, um bilhete na agenda ou um bate-papo no fim da noite talvez nunca mais seja o suficiente.  Enquanto escrevo este texto, a cidade de São Paulo, vive seu 66º dia de distanciamento social. A grande maioria das famílias está em casa, sem rede de apoio, com medo do vírus, medo da crise financeira e medo da retomada que se aproxima. Habituados que estamos agora ao isolamento, vivemos um misto de medo e vontade de retomar as atividades. Estamos todos à espera de um novo normal que, sem perceber, já começamos a construir. Se tivermos feito tudo certo ou, pelo menos, mais ou menos certo, sairemos dessa com saúde, mais unidos enquanto família, mais conscientes enquanto pais, mais respeitosos com nossos parceiros de parentalidade (os professores e a escola) mais empáticos com aqueles que não puderam se isolar com Internet, comida na geladeira e muito papel higiênico (tão desnecessário). Se tivermos feito tudo mais ou menos certo, já teremos um novo normal melhor com ou sem vacina.

Autor(a)

Escrever um comentário